quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Rubem Braga- espírito - Favela e tragédia

RUBEM BRAGA- espírito




A LUA, A ALIANÇA, O FUTURO...

             A noite parecia anunciar chuva, e um vento frio fustigava as ruas desertas da favela. Não era tão tarde assim, mas as vielas e becos estavam vazios. Nem mesmo os botecos, tradicionalmente com gente, estavam abertos. É que chegou o aviso de que "os homens iriam subir", e aí há sempre esse quadro, de falsa solidão.

             Aqui e ali vêem-se luzes, saindo pelas frestas, mas as janelas estão fechadas, lacradas como as portas. Escuta-se aqui e acolá o barulho das tvs, ou um radinho murmurando um jogo de futebol.

             O vento mudando de sexo, agora brisa, lenta e preguiçosa, baloiça, lânguida, uma primavera, já com flores, mas, esquecida. No silêncio- Calada como um velho resmunguento- não é total. É sorumbática, quase cavernosa. Faz lembrar o cemitério. Pelo jeito que vem, vai demorar pra subir o morro.

             Uma luz, de farol, começa a subir, quase meio cega, pela rua deserta da favela. Outra, mais outra, e mais uma. São três viaturas. 

             Cumpria-se a notícia. O informante não se enganou. Era uma batida, e vinham em carros fortes, escuros, só o farol, baixo - aceso-. e param, por instantes, na pracinha de apoio. 

             Não se vêem pessoas, mas as viaturas conversam, baixinho como o farol, entre si, e o céu se escurece mais. São nuvens de chuva criando um biombo para esconder uma lua, medrosa, com mau pressentimento, tremendo.

             Não mudam a direção, não mudam o pavor, mas mudam o semblante do amontoado de barracos. Um cachorro vira-latas, com cara de valentão, parece falar:  -" O que é que vocês querem aqui?"-  As viaturas não respondem. Acho que não entendem a língua dos cachorros, principalmente a dos vira-latas, que falam demais. 

             Continuam a subir. Estão quase no topo, e param. A viatura do meio se abre, e dela sai um grandalhão, com papéis na mão. É grandalhão, mas tem cara de ingênuo. Lembra muito um sobrinho que eu tenho... ou tinha... bem...verei isso depois. No contraste com o farol -baixo- vê-se o reluzir da aliança.

              Logo, as viaturas, já paradas no meio da rua, começam a cuspir policiais. Saem...3... 5.... 8... 10...acho até que mais... Parei de contar para não fazer barulho, pois minha máquina de datilografar continua escandalosa. Meus dedos se recusam a se calar, como os vira-latas, mesmo temerosos de minha ansiedade.

              Um, que parece ser o chefe- porque é gordo e baixinho- cochicha no ouvido dos outros. Alguns até se abaixam para ouvi-lo. Deve ser algum segredo. Se posicionam ao lado da viatura do meio... e três se adiantam, em direção a um beco... com papéis e metralhadoras, na mão. 

              Passa-se algum tempo. O baixinho agora fala ao telefone. Não tão cochichante, o que faz o vira-latas discursar novamente. 

              Num átimo, ouvem-se estouros de portas, e gritos... berros de crianças, mulheres, cachorros, e em seguida, tiros... saraivada de tiros, muitos, repetidamente.... Inferno!

              Os que estavam perto das viaturas, assustados... parecem recuar, querer entrar nos carros. Mas o gordo baixinho, que agora era mais do que chefe, ordena...-"Vamos lá ... vamos entrar... vamos subir..."- e entram no beco, de metralhadoras em riste, já atirando...

              Do beco saem chispas de fogo, tiros se cruzam, muitos tiros... Ouvem-se gritos e gemidos, correria, as casas magicamente se abrem... saem pessoas...correm a ver o que foi aquilo...!

              Um  rio de sangue começa a descer, preguiçoso, do beco. Muitos corpos amontoados... de policiais e de moradores da casa abordada. 

              -"Emboscada...emboscada...!"- grita um velho negro, ainda bêbado, que brotou de uma janela, perto das viaturas... 
               Alguém grita:- cala a boca, filho da puta!

               Muitos corpos no chão, quase todos ainda se mexem... mas logo desistem e    silenciam.
               De pronto o terror aumenta. Diversas viaturas sobem berrando nas ruas, não mais desertas, da favela. Sirenes de polícia e de ambulâncias... Os vira-latas sumiram, não latem mais. Meus dedos sim.

                Ao todo, 19 mortos... Vejo a expressão de dor, do grandalhão ingênuo, e mais uma vez, a luz da lanterna faz rebrilhar uma aliança, agora no dedo de um cadáver. 

                12 policiais e 7 "bandidos" é o saldo.  Em cima dos corpos, fuzis e metralhadoras, empapuçados de sangue. Os "bandidos" ficam amontoados num canto, enquanto os policiais são levados em padiolas para os carros de esperançosos (e já inúteis) resgates.

                Os moradores, agora sem nenhum medo, se aproximam para reconhecer os que ficaram, jogados no canto. São jovens, talvez 17, 18, 20 anos, não mais. Nascidos em 2000, um pouco mais, um pouco menos.

                Com teimosia e insistência chata, um poema de Betinho (que não é chato) insiste em entrar na conversa. Deixo.

"Bala perdida!
Vida perdida!
Sociedade perdida!
Esperança perdida!
Menino bandido
Bandido bandido
Governo bandido!
Polícia bandida!
Sociedade banida! 
Juventude destruída! 
Pátria fratricida!.
São as fezes nauseabundas de uma sociedade porca,
desonesta! De um governo assassino, 
marginal, mentiroso, bandoleiro
estelionatário, ladrão!
E suas hitlerísticas soluções repugnantes"

            Eu não sei d'onde o Betinho tirou isso, há 1 ano atrás, num 13 de agosto. Maluco!...  Adulterei.

             No meio de toda gente, uma velha, gorda e feia, parda e rota, se abaixa com uma toalha, rota e feia, pra cobrir o corpo do neto, Clayton, pardo. 
             Suas lágrimas são grossas e molham o pano, feio. 
             Corajosa, pergunta pro soldado, que agora empurra os curiosos:
             -" O senhor sabe pra onde levaram o corpo do Serjão?" O policial não responde, nem olha, e continua a empurrar tudo. 
             Sem esperar resposta, ela apenas sussurra:- Serjão também é meu neto.

             Serjão terá um enterro com honras de herói. Na sua mão continua a cintilar, com o reflexo da clarineta, aquela aliança brilhante. Sua avó não vai comparecer, só a mulher e a filha. Estão no enterro de Claytynho, o neto "bandido". Mas o governante vai fazer um lamentoso e inútil pronunciamento, pela tv.

             Como Betinho, maluco, aviso que eu também virei profeta. Meu passatempo agora é ver o futuro.


RUBEM BRAGA- espírito-

                                         Mensagem psicográfica colhida pelo canal Arael Magnus, em 31 de agosto de 2019, em reunião doméstica, em Coroa Vermelha, Bahia.

                                         Obs.- O poema a que se refere o comunicante está publicado na mensagem número 6 de Betinho - espírito (Herbert de Souza em sua sequência "Trégua cidadã", que pode ser visto neste endereço- 
https://araelmagnus-intermdium.blogspot.com/2018/08/betinho-espirito-tregua-cidada-6-arael.html