UM CANTO À REVOLTA
E um dia...
na mata de verde alegria
Com o sol acendendo o bronze
Da pele lustrosa da Tumucumaque
Veio na estrada de água, o branco
Risonho, com espelhos e panos
Enganoso, estranho.
Levou todo o ouro, as pedras,
Deixando
Um rastro de sangue, doença, pobreza.
E Mbãtu surpresa, ingênua gazela
Deitada na rede, viu sua aldeia
Invadida, tomada, roubada.
Arrombada
Pelo sabre assassino do branco
Risonho, com espelhos e panos.
Assombroso, castanho...
E aos poucos
a pele lustrosa da Tumucumaque
perdeu todo o brilho, o sol foi-se embora
malária, diarréia, sarampo,
virose
são nomes da morte que assola a aldeia
presentes do branco, tinhoso, medonho.
Tuberculosos
guerreiros vomitam
e se revoltam, morrendo de gripe.
E as oligarquias, porcas, peçonhas
Gatunas,
Ñangui avoitêe...mauarim i’lê
Não mandam pra aldeia ponto de saúde
De tratar mazelas trazidas por brancos
Mas deixam na oca com cheiro de azedo
A banca de votos, com urna e desprezo.
Brancos covardes,
bancas da mentira
Baloiçam as setas envenenadas
das falsas promessas
zombando dos guizos de serpentes
açuladas.
O vermelho do urucu pintando as caras
na Amazônia ressecada, fria e tesa.
Cora Coralina
espírito
Menina na ponte
As palavras soltas no ar
aguçam
Minha vontade de poetar de
novo
Poetar o novo, poetar na
ponte.
Como é infeliz o que não crê
na
vida
Paira no ar tristeza de quem
não vê
Que além da sombra há um
mundo
Efervescente, pulsante
De brilho intenso, enorme, radiante.
A menina sonhando com o
bordado
rosa
Cose o seu amado, sentada na
ponte.
É o namorado cujo nome é sol
Que a vem roubar pela
manhã.
Cora Coralina
espírito
LÂMINAS
Faço agora da palavra um
punhal,
Lâmina dupla a invadir
feridas
Dilacerante à bolsa
pustulenta
Espalha em redor cheiro
forte hortelã
Esbordejar da verdade aos
ímpios.
No olhar trago luz
esmiuçante
Olho de dragão pronto ao
ataque
De fazer tremer o tirano que
ameaça
Seu império de enganos, de
trapaça.
Afio a palavra no esmeril
desta razão
Para ordenar esses
insistentes de matar
Crianças e jovens
Que sem educação
Sem lar, sem aconchego,
Sem bolo de fubá e doce
Não são monstros, nem são
vermes
Nunca tiveram infância
Nunca do amor de mãe
souberam provar o doce
Se são bandidos, ladrões,
marginais
São sementes germinadas
no canteiro original
dessa sociedade imunda
no canteiro original
dessa sociedade imunda
Da corrupção infinda.
Sameadas... no estrume
Produzidas em torrentes
Por estes que agora clamam
Na insistência de matar.
Nossas crianças
Filhas da rua.
Cora Coralina
espírito
NO BORRALHO
Remexendo a panela de
lembranças
Sai o doce de goiaba. Que
delícia!
Rio de mim, como rio...
Rio Vermelho...espelho a céu
aberto de meu céu.
O cheiro alho, amassado com
cebola
No tempero da lingüiça italiana
Transporta agora pensamentos
de alegria
Revivente de emoções que alimentam.
Beijo meus filhos cheirosos
Com as mãos cheirando alho
E a boca manjericão...
O bordado estica a linha
verde
Faz desabrida esperança
Percorre bastidor em ponto
cheio
No pano bem resistente
De memórias tão felizes.
Sacolejo a peneira que
recende
O amendoim torrado
Cheirando visita de anjo.
Abro a janela da rua
E me debruço na chuva.
Existo, é só o que me
pertence.
Inda’credito no Tempo
Só que agora o chamo Deus.
Cora Coralina
espírito
Apesar do sol saliente que acordou-me bem cedinho
Das mil felizes lembranças, que descobriram meus pés
Hoje estou preocupada... (uns dias são assim...)
Estão faltando duas pétalas na rosa de meu jardim...
Eu ainda não sei como as flores se refazem,
ou são refeitas.
Eu sei de mim...completa...
com todas as folhas e pétalas.
Mas eu não sou flor...
Se bem que às vezes fui...flor que se cheira..
(Se bem que às vezes não fui...)
E quem nunca foi?
Pode ser que um passarinho cantou no ouvido da flor
Que apaixonada deixou nos braços do amado
os pedaços de si.
Mas se tiver sido amor não tirou pedaço.
O amor e a bondade
Mesmo acompanhados por dor e ingratidão
nunca destroem
Só acrescentam...
Parece que há um fermento...
Claro... certos sentimentos doem, mas é tal dor parideira
Que faz nascer nova vida.
torna melhor quem os sente.
Muitas vezes me pergunto
Por que não criam decretos
Obrigando todo mundo a ter generosidade?
Porque isso
É a forma concreta de revelar o Amor Verdadeiro.
Apesar do sol quentinho que acordou-me de manhã
Eu hoje estou no fermento, no aumento da
Esper-ânsia
Cora Coralina- espírito
MIL FACES DA MESMA VIDA
A face da menina do lenço axadrezado na cabeça
Cora.
A colcha verde de costura reta no varal pingando
Chora
Na caixa de recados postos encostados a lembrança
Mora
Onde agora você mora, ou chora, Cora?
Moro na certeza do eterno onde não importa
A hora
Fiz cafua no onírico terreno dos desejos que não vão
Embora.
Plantei muda de arruda, emoção, alegria, queijo cura
Amora
Canteiro de carinho, que dá milho cozido repartido sem
demora
Aqui em tempo inteiro, madrugada, noite, tarde, sempre
Aurora
A inspiração contínua esmurra o peito, abre caminho e
Aflora
Não preciso crença, ou bênção, em mim pulsa a vida
Agora.
Essa vida é mais forte e real do que o código define e
Comemora.
Fuja da ilusão perdida do mercador da Fé. Ele a Verdade
Ignora.
Não caia na cilada dos que vendem céu de um deus que
Explora.
Apiede-se do incréu que ataca o espírito. É o medo que
Apavora.
Com horrendas companhias a insuflar-lhe o ódio que o
Devora.
Raciocine. Sempre tenha na Bondade o leme, o rumo vida
Afora.
O futuro é hoje. A consciência plena no Bem - isso é que
Vigora.
Nunca perca a Fé. Deus acompanha o caminho de quem
Ora.
E assim, feliz com a rima, vou pra cima, vou-me
Embora....
ora.. Ora
Cora Coralina- espírito
Recebidos em sessão pública no dia 10 de abril de 2014 no
CEFEC- Valparaíso de Goiás pelo canal Arael Magnus.