segunda-feira, 6 de julho de 2009

O MARTÍRIO DO APÓSTOLO


Estava, naquela madrugada, à beira do Tiberíades.
Na costa do Kinneret, o som das ondas é melodioso como o nascido da harpa, já o disseram há milênios.
Aquelas margens, pisadas um dia pelos pés do Bom Pastor, comportam o referido mar, formado pelas águas do Jordão, que nos arremete a outras emocionantes paisagens e fatos. Há oito décadas havia estado ali, e sabia, por intuição, que ele esperava por mim. Deslizei os olhos pelo Lago de Genesaré, com suas povoações periféricas, algumas usadas por Jesus como exemplo de incredulidade e insubordinação. Fiquei acomodado numa rocha e notei alguém vindo em minha direção.

Ergui-me, -por reverência e susto- pois confirmava-se pela alegria interior, que eu desejei esse encontro. Programara-o. O hálito suave da madrugada fazia balançar a argêntea túnica do que chegava. Reconheci aquele marcante perfil, mesmo à distância.

Com um aceno de mão, forte e paternal, sugeriu que eu me assentasse. Em sua nobreza serena, postou-se a meu lado, numa marmórea base. Margeei seus traços fortes, envolvidos por tênue espectro azulado. A emanação do luar restante tornava em prata os cabelos soltos, acrescendo pequenas estrelas nas barbas de meu anfitrião:
-Então?- disse-me ele com terna entonação - O confessor nada pergunta?- provocou.

Percebendo meu descontrole e surpresa, continuou:
-Recebi o recado. Até mesmo o aguardava, e quero dizer que me sinto à vontade para responder às indagações, todas elas... - e fitando-me com profundos olhos azuis, assinalou seu carinho - Faz-me bem esse nosso reencontro...

Extasiava-me a presença daquele interlocutor singular, e a cálida aceitação de minha chegada, convertia a suposta experiência que imaginava ter, em transparente emoção.

Durante as existências das quais me lembro -e não são poucas-, meus conceitos sempre oscilaram, indo de um lado a outro, como embalado pelas correntes do pensamento, ou ondas da moda. Variei, como bêbado vulgar, no pêndulo das vertentes da fé e do ceticismo. Fui fanático e ateu; absorvi com avidez tanto da crença cega, quanto do “niilismo” e sua muralha de afirmativas. Fui grosseiramente incrédulo, tanto quanto ingenuamente místico. Tudo se desmoronou pela força da lógica imposta em meu destino pelo caminho do Divino Galileu, clareado no Paráclito kardeciano. Mas, desde quando me foi permitido recordar, sempre tive um conceito imutável sobre esse que agora revisito, como sendo o símbolo da felonia, da perfídia, da traição. Descubro mais uma vez, como é frágil e incorreto o julgamento humano, porque basta estar aqui para reconhecer a fascinante força, na extraordinária estatura de um verdadeiro apóstolo.

Ao meu lado, cegando-me pelo brilho de sua personalidade magnética, naquelas paragens sagradas da terra das águas, cujas fontes espirituais saciam há tempo, a sequiosa curiosidade humana, Judas, filho de Simão de Ish Kärioth, um dos doze de Jesus. O único dentre os convocados pelo Mestre, que não era galileu.

-Obrigado... Obrigado pela gentil recepção... - exortei como um principiante, desconcertado e confuso.

Envolvido por agradável carisma e recompondo um pouco da ofuscada lucidez, notei que no encontro do céu com o mar de Tiberíades, já rasgavam a cortina, alguns raios do sol que não tardaria.

- Caro apóstolo - perguntei com amparada segurança - sendo aquele ato, o da entrega do Mestre aos sacerdotes, uma incumbência determinada pelo próprio Divino Amigo, aceitando-a, e cumprindo o que foi definido, por que a auto-imolação na figueira?

Antes de qualquer resposta, num relance, recriei o quadro de 2000 anos antes, no horto cenarial. A tomada dos soldados em busca do líder Nazareno, alvoroço, correria, o ósculo codificado, a explosão de alguns, a serenidade imperturbável de Jesus. Na tela mental diviso, encostado num toco ressequido, Judas Iscariotas. Desespero, angústia, quase terror, são refletidos em sua expressão. Ali a razão e o instinto se digladiavam. Estava paralisado, atrofiado como o próprio resto de cedro em que se apoiava. Minha divagação foi cortada pelo que me recebia. Com voz firme, desembargada pela entonação segura, redarguiu, prestamente:

-A situação exigia que eu fosse forte no pulsar da razão, mas me sucumbi no ilógico estertor da emoção...

Embaralhados estavam meus conceitos naquele momento. Separei a reflexão em um lugar especial no escaninho de buscas futuras. O filho de Simão Ish Karioth, agora com o olhar voltado para o monte que estava à frente, buscando o flagrante daquela época, prosseguiu:

-Eu estive com o Senhor também na noite anterior, no Jardim das Oliveiras. Sofri muito com sua angústia... o sangue a gotejar da Santa Face em sua alva túnica....

-O fenômeno da hematidrose!...- exclamei pra mim mesmo, como a me escorar no corrimão da escada que levava ao mais alto, no entendimento.

- Eu não tive ali, piedade do Mestre, meu irmão... todos nós, todos, estávamos preparados para aquele desenrolar. Sabíamos o que viria. Os escolhidos tinham ciência do que era mister acontecer. Fomos, durante séculos, os que superaram os óbices, as mais acerbas provações, assimilando ensinamentos, preparando o caminho. O Sagrado Fruto de Deus estava maduro. O azeite revelador da eternidade e da santificação do espírito haveria de ser retirado, ainda que sob a mó da incompreensão e intolerância.

- Getsêmani... a prensa do olival...- aduzi mentalmente a mim mesmo, buscando definições etimológicas. Mas ele continuou:

-Naquele grupo e em torno dele, estavam sacerdotes de amplo discernir, magos alquimistas, sábios de remotas eras, profetas de inúmeras civilizações, figuras exponenciais do conhecimento, os maiores no saber e sentir, e mártires, todos mártires....

-Mártires?- interferi de modo meio infantil.

-Sim- prosseguiu- invariavelmente o fomos, alguns mais de uma dezena de vezes... ainda era o filtro, o depurador e ao mesmo tempo, o sinal da diferença, o estigma divino ...Moldou-nos o tempo no cinzel da dor para aquele momento. Mas um turbilhão de dúvidas trouxe-me o medo. Ouvi-me como Jeremias, a vaticinar o despencar do corpo do traidor, despedaçado no abismo da iniquidade...

- Mas- tentei amenizar- ali, até o próprio Mestre teve instante de vacilação quando roga ao Pai que dEle retirasse o cálice...

E meneando a cabeça, se interpôs -.... Nem de longe ouse comparar a minúscula gota que me era reservada... Eu precisava resistir... - objetou.

Não era indispensável atenção acurada para notar que nas últimas palavras, desciam reservas de pranto em dolorosa revisão. Emoldurei com meu silêncio aquele instante. Notei o antes plácido lago a se encrespar, anunciando na voz do vento, que a tempestade não tardaria.

-Não entendi, porém, - interferi, assumindo a pinça questionadora do entrevistador - a razão de tantos sofrimentos posteriores, como a queima na fogueira da virgem de Domremy, do escárnio e humilhações pelos inquisidores...

Antes que eu completasse, a voz suave, porém austera do apóstolo a quem Jesus mais confiava, cortou meus argumentos:

-Nenhum sofrimento é imposto a ninguém, a não ser por si próprio, por escolha e atitude ...- e patenteando sua segurança, recompôs-se, fazendo brilhar ainda mais o olhar que refletia agora tênue luz, completou sereno- “Eu precisava quitar meu débito...assumi uma grande dívida...resgatei-a...”

- Dívida.... pela traição?- emendei

- Não... filho...o quadro estava programado, e a palavra havia de ser cumprida. Naquela semana veio a mim uma aterradora visão e a relatei ao Mestre. Nela percorri nos olhos, os páramos celestiais, a morada do Excelso. Identifiquei também os discípulos me açoitando, apedrejando-me, destruindo-me aos poucos. O Mestre Sublime mo a confirmou e depois de breve censura sobre minha aflição, contou-me alguns segredos, confortou-me, e prevenindo-me disse--”Tu estarás acima de todos eles. Pois aceitaste ser o cutelo do sacrifício ao homem que veste o Filho de Deus”. Mas em mim estava inoculado o veneno do medo.

E com galharda postura, arrematou:
- Meu erro, o maior de todos, prática gravíssima, acarretando todos os débitos que gastei um milênio e meio para saldar, inaceitável sob condições mínimas de consciência, principalmente de quem conhecia sua extensão, foi o suicídio!

A chuva, neste momento, caiu, misturando-me as idéias. No chão, numa tábua lavrada, as palavras: Peuaggelion Nioudas. Estupefato, vi-me com a sotaina escarlate de Bispo Irineu de Lyon. Senti-me abraçado, e em seguida, um facho de luz, numa sincronia de raio, cortou os céus, abrindo-o. Ao fundo um cortejo angelical conduzia às alturas um valoroso guerreiro do Amor, vitorioso, com Jesus.

- Humberto de Campos - espírito-

(Mensagem recebida no Celest- Centro Espírita Luz na Estrada- Sabará -MG- pelo médium Arael Magnus em 17 de Maio de 2009.) fundoamor@gmail.com

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